Davi Boaventura comenta a importância dos prêmios literários e lembra: "é preciso ter cuidado, não dá pra alimentar a vaidade"

Davi Boaventura é um autor com uma trajetória marcada por reflexões sobre a literatura e sua interseção com outras formas de expressão, como a fotografia. Ele publicou livros como “Mônica vai jantar”, que foi adaptado para o teatro e concorreu ao Prêmio São Paulo de Literatura, e vê o reconhecimento em premiações como como uma importante plataforma para divulgar obras que fogem dos circuitos mais comerciais, permitindo que escritores alcancem públicos mais amplos. “O Prêmio São Paulo trouxe camadas diferentes para a recepção do livro, uma certa atenção aos detalhes do texto e uma quantidade maior de resenhas e retornos, que mexeram bastante com minha própria relação com a literatura.”, disse Boaventura.

Nesta entrevista, o escritor, tradutor e fotógrafo, que percorreu entre os dias 1 e 4 de outubro bibliotecas municipais das cidades de Cananéia, Itanhaém, Cubatão e São Bernardo do Campo, durante a 16ª edição do programa Viagem Literária:  módulo Encontros com Escritores – Prêmio São Paulo de Literatura – fala também sobre as principais influências em sua formação como escritor e ainda dá dicas aos aspirantes a escritores sobre o hábito da leitura: “Conhecimento acumulado não tem muita serventia se você não sabe ligar os pontos. Prefiro ler alguém que, com dez livros, faz uma pizza maravilhosa do que quem transforma duas bibliotecas em uma gororoba”, destacou.

Sobre a relação entre fotografia e escrita criativa, Boaventura explora essa intersecção em sua própria prática. Ele acredita que experiências visuais, incluindo a fotografia, moldam e influenciam a maneira como escritores constroem narrativas​.

Confira abaixo a entrevista na íntegra!

Prêmios literários costumam ser marcos importantes na trajetória de escritores. Em sua opinião, como esses prêmios podem impactar a carreira de um autor, tanto em termos de visibilidade quanto de reconhecimento artístico?

Davi: Olha, um dado que sempre me impressiona é saber que, todo ano, a publicação de novos livros no Brasil ultrapassa a casa das dezenas de milhares, isso sem contar muitas das produções artesanais, zines e plaquetes, títulos que muitas vezes sequer têm ISBN ou registro formal. Então, em um mercado tão saturado, às vezes é bem difícil encontrar um público que de fato leia seu livro. A pessoa precisa saber que seu livro existe, precisa escolher comprar seu livro ao invés de comprar o best-seller da semana, precisa querer leu seu livro ao invés de pegar um outro na pilha dos não lidos. Então concordo muito quando dizem que a chancela de um prêmio funciona como um filtro muito poderoso. É verdade, joga um holofote sobre sua literatura, uma luz que, talvez, de outra forma, você não tenha tanto acesso, e isso ajuda muito para que as pessoas conheçam seu trabalho. Aí de repente você descobre que um casal de Belém está lendo seu livro, que uma turma de escritores de Porto Alegre está estudando seu estilo, que uma amiga sua de Maceió adorou determinado trecho e fez uma performance com ele nas redes sociais, que um grupo de mulheres de Jundiaí resolveu adaptar seu livro para o palco, é esse tipo de conexão que faz a literatura valer a pena. Porque, se uma parte do processo é solitário, você com o texto dentro da sua cabeça, não acontece nada sem a outra ponta, sem as pessoas com o livro na mão. Não acho que o texto seja um fim em si mesmo. Acho que o texto é o começo de uma conversa. É uma obra aberta.

No cenário literário atual, você acredita que os prêmios ainda são fundamentais para legitimar a qualidade de uma obra ou autor, ou existem outras formas tão importantes de se destacar?

Davi: O mundo mudou muito, não tem como negar esse fato. E, com a onipresença da internet e dos algoritmos, os caminhos se diversificaram, estamos vivendo entre várias comunidades esparsas e que nem sempre conversam umas com as outras. Às vezes você escuta o nome de uma pessoa pela primeira vez e, quando vai ver, essa pessoa tem oito milhões de seguidores no Instagram. Como várias outras pessoas já disseram, acredito que a grande questão hoje é descobrir como não se perder no meio da multidão, é entender quais são os pontos de referência confiáveis, quem são os novos “porteiros” ─ os gatekeepers – sobre os quais o jornalismo fala há, sei lá, mais de cem anos ─, separar o que é barulho e o que não é. Por isso acho que, nesse sentido, por mais que os prêmios sejam também reflexos de um grupo de jurados, e sejam influenciados por diversos aspectos culturais, não dá para ignorar que eles ainda têm um peso bem importante no reconhecimento de um livro. A curadoria hoje, do ponto de vista relativo, tem até mais importância do que antes. 

Quais prêmios ou reconhecimentos literários você considera mais marcantes em sua própria carreira? E como essas conquistas influenciaram sua trajetória como escritor?

Davi: A indicação ao Prêmio São Paulo de Literatura, com certeza, foi o mais marcante, pelo tamanho do prêmio, pela importância nacional, por ter levado o livro para alguns lugares que ele não teria como chegar sem esse reconhecimento, mas também pelo momento em que aconteceu, no final de 2020, auge da pandemia, eu e minha ex-companheira trancados em um apartamento em Curitiba, foi uma coisa que mexeu muito com meu emocional. Talvez tenha sido um dos momentos que mais me fez entender o que é ser um escritor, o que é “trabalhar com literatura”, e não ter somente uma aproximação diletante com a escrita. Claro, os prêmios gaúchos para  “Mônica vai jantar” também foram bem importantes, pelo peso simbólico de me sentir aceito por aquela comunidade ─ porque, afinal, sou um escritor de Salvador que morou seis anos em Porto Alegre e mais cinco anos em Curitiba – e publico por uma editora gaúcha independente ─, e esse sentimento foi muito forte, mas o São Paulo trouxe camadas diferentes para a recepção do livro (, uma certa atenção aos detalhes do texto e uma quantidade maior de resenhas e retornos, que mexeram bastante com minha própria relação com a literatura. Ao mesmo tempo, esse movimento te mostra também como é preciso ter cuidado, como não dá pra alimentar a vaidade, a vida continua igual. É trabalho. Sentar e tentar escrever o melhor que você pode, dentro das suas condições, fazendo o máximo para não se enganar.

Como a leitura de diferentes gêneros e autores influenciou sua prática escrita? Você acredita que a leitura é uma das ferramentas mais poderosas para aperfeiçoar a escrita de um autor?

Davi: Bom, eu cresci em uma cidade turística, acostumada a receber gente dos mais diferentes estados e países, e gosto muito da ideia de que você pode encontrar inspirações artísticas até nas fontes mais inesperadas, então, para mim, acho que a mistura é essencial. O resultado pode até ser um texto, mas a origem desse texto parte de um grande caos criativo e entra um pouco de tudo: filme, música, pinturas, outros livros, uma conversa, uma aula de pilates. Um dos exercícios que mais gostei de fazer, por exemplo, e que, se tudo der certo, deve virar um livro infantil em breve, é tentar traduzir uma cor em palavras. A leitura, com isso, em uma chave mais ampla, precisa operar junto com o pensamento crítico, com o olhar atento, com o cuidado de buscar os estímulos variados e transformar tudo aquilo em algo que faça sentido para você e para seu trabalho. Até porque quem escreve não escreve isolado do resto da sociedade, escrever é sempre um ato ético de se estar no mundo. 

Quais foram as leituras mais impactantes em sua formação como escritor, e de que maneira elas moldaram seu estilo ou abordagem literária?

Davi: Não acho que eu seja um escritor formado, acho que, em cada época, a gente se torna um escritor diferente, com formações diferentes, com perspectivas que podem ser muito distintas das perspectivas que tínhamos alguns anos atrás, principalmente porque um livro não se escreve em um dia, às vezes a gente leva anos com o mesmo texto e vai amadurecendo junto com ele. Quando lancei meu primeiro livro, ainda em 2012, minha principal influência talvez tenha sido “O apanhador no campo de centeio”, de J.D. Salinger. Mas, para o “Mônica vai jantar”, por exemplo, o estilo de Raduan Nassar em “Um copo de cólera” foi importantíssimo para eu descobrir meu próprio estilo de escrita. De uns anos pra cá, a escritora britânica, de origem nigeriana, Bernardine Evaristo, tem sido uma figura que volta e meia me aparece no pensamento. James Baldwin é outro que tem andado bem perto. O último livro de Julia Dantas, por exemplo, me fez pensar sobre a possibilidade de humor mesmo no meio da tragédia. Você pega um pouco de cada pessoa e tenta criar um todo coeso. Para mim, inclusive, a questão sempre parte do seguinte princípio: como escrever algo que é seu, mas, ao mesmo tempo, não é apenas uma mera repetição do que você já fez?

Que conselhos você daria para aspirantes a escritores sobre o hábito da leitura? Existem práticas que você considera essenciais para uma leitura que contribua significativamente para o desenvolvimento da escrita?

Davi: Um arquiteto e artista plástico mineiro que mora em Curitiba e foi uma das pessoas mais interessantes que conheci nos últimos anos uma vez me disse o seguinte: é só fazer as contas, se você ler três páginas por dia, no final de um ano você já vai ter lido mais de mil páginas. Então acho que uma das primeiras coisas que a gente precisa desmistificar é que, para ler, a pessoa precisa passar horas parada com o livro na mão. Você lê quantas páginas quiser, pelo tempo que quiser ─ assim como também é preciso ter em mente que ninguém é obrigado a ler dois mil livros para começar a escrever, nem ficar na briga entre ter que ler os clássicos ou acompanhar a produção contemporânea, ou só botar no papel depois de estudar profundamente todos os detalhes da história. O importante, na minha opinião, é aprender a construir associações, estabelecer conexões consistentes e interessantes, até imprevisíveis. Conhecimento acumulado não tem muita serventia se você não sabe ligar os pontos. Prefiro ler alguém que, com dez livros, faz uma pizza maravilhosa do que quem transforma duas bibliotecas em uma gororoba. 

Você pode nos contar um pouco sobre sua trajetória profissional como escritor? Houve momentos específicos que marcaram uma virada em sua carreira?

Davi: Sempre acho meio engraçado pensar em termos de carreira literária porque uma coisa que precisa melhorar muito no mercado literário brasileiro é justamente o profissionalismo. Fora algumas boas exceções, existem ainda muitas empresas amadoras no meio e algumas editoras não podem nem ser chamadas de editoras, são apenas gráficas mesmo. Você, enquanto profissional da área, é obrigado a se virar nos trinta, e às vezes nem sobra tempo ou ânimo para aquilo que é o que você gosta mesmo de fazer, que é escrever. Mas consigo pensar em dois momentos bem significativos na minha trajetória, dois pontos de virada. O primeiro, em 2013, foi quando me mudei para Porto Alegre para fazer o mestrado em Escrita Criativa da PUCRS, porque tive contato na sala de aula com muita gente muito qualificada e isso me trouxe não só outra visão de mundo e da literatura como também um novo padrão de exigência ─ não dava para escrever qualquer coisa e mostrar pra aquelas pessoas, eu precisava me esforçar ─, sem falar no choque cultural que foi sair da Bahia e me abrigar no Rio Grande do Sul. Foram seis anos em Porto Alegre e não tenho dúvidas de que não saí a mesma pessoa de quando cheguei. O segundo momento aconteceu a partir de 2021, quando comecei uma transição para o mundo da tradução e por lá fiquei, trabalhando em mais de duas mil páginas em um período bem curto. Com a tradução, não sei, parece que você acessa outra dimensão da literatura, você conhece as entranhas do texto, aprende como ele funciona e como faz o que ele faz. Não tem como passar ileso por essa experiência.

Sabemos que além de escritor, você tem uma relação forte com a fotografia. Em suas experiências com fotografia, há algo que você aprendeu ou desenvolveu que foi fundamental também para a sua prática de escrita?

Davi: Fotografia é sem dúvida uma das coisas que mais amo no mundo. Quando era adolescente, minha mãe me deu uma câmera básica, mas, como eu não sabia bem o funcionamento da máquina, acabava cortando várias cabeças nas fotos e meus amigos da época me tripudiavam bastante. Comecei a fotografar mais a sério na faculdade, no laboratório de fotografia da UFBA, e queria me profissionalizar na área. Mas fiquei com medo. Olhava pras fotos de um amigo meu e pensava: “Caramba, nunca vou conseguir fotografar desse jeito”. Mas, depois, me dei conta de que talvez pudesse fazer no texto o que ele fazia na imagem, e aí me voltei pra escrita e comecei a desenvolver meu estilo, mais “agitado”, por assim dizer. Alguns anos mais tarde, a paixão voltou. E tanto o “Mônica” quanto o livro que estou escrevendo agora começaram a surgir a partir de uma fotografia, uma foto que eu olho e penso: “quero traduzir essa imagem em um texto”. É uma tradução bastante livre, claro. Começa em uma coisa e vai terminar em outra. Mas a imagem acaba sendo uma baliza muito forte. Outra coisa que me encanta muito na fotografia é o acaso, o imediatismo do inesperado, a imprevisibilidade. Talvez por isso eu não costume fazer planejamentos e esquemas muito rígidos para um livro. Tenho uma ideia geral, defino alguns pontos importantes e vou escrevendo. Se decidir mudar na hora, se o inconsciente trouxer alguma ideia diferente, tá tudo bem, só vou e lá na frente decido o que fazer com as curvas. Pode ser meio trabalhoso, porque você precisa voltar pro início do texto para ajeitar algumas pontas soltas, mas acho que ter essa liberdade é essencial para não transformar a criação em uma produção mecânica. O pior que pode acontecer hoje, na minha opinião, é entregar para as pessoas uma literatura chat-gpt, sem tempero nenhum.

Continue acompanhando a programação completa de Encontros com Escritores – Prêmio São Paulo de Literatura por aqui! 

Foto: Davi Boaventura (crédito: Flor Reis)